Quando observamos alguém comendo uma barra de chocolate após um dia estressante, restringindo drasticamente sua alimentação ou tendo um episódio de compulsão alimentar, estamos vendo apenas a ponta de um imenso iceberg.
O comportamento alimentar visível (aquilo que colocamos ou não em nossos pratos, como e quando comemos) representa apenas uma pequena fração de um sistema complexo e profundo de pensamentos, emoções, necessidades e esquemas psicológicos.
A metáfora do iceberg é particularmente útil para compreender nosso relacionamento com a comida. Assim como um iceberg tem apenas 10% de sua massa visível acima da água, enquanto 90% permanece oculta nas profundezas do oceano, nossos comportamentos alimentares são apenas a manifestação superficial de um intrincado sistema psicológico submerso.
Neste artigo, mergulharemos nas diferentes camadas desse iceberg, explorando como a Terapia do Esquema e a Psiconutrição oferecem ferramentas valiosas para compreender e transformar nossa relação com a comida. Ao entender o que está abaixo da superfície, podemos desenvolver uma abordagem mais compassiva e eficaz para promover mudanças duradouras em nosso comportamento alimentar.
A Ponta do Iceberg: Comportamentos Alimentares Visíveis
A parte visível do iceberg do comportamento alimentar inclui todos os aspectos observáveis da nossa relação com a comida. Isso engloba o que comemos, quanto comemos, quando comemos e como comemos. Alguns exemplos incluem:
- Restrição alimentar: Dietas rigorosas, corte de grupos alimentares, contagem obsessiva de calorias
- Compulsão alimentar: Episódios de consumo excessivo de alimentos com sensação de perda de controle
- Comportamentos compensatórios: Exercício excessivo, jejum ou uso de laxantes após comer
- Padrões alimentares rígidos: Regras inflexíveis sobre horários, combinações ou tipos de alimentos
- Comer emocional: Recorrer à comida como resposta a estados emocionais específicos
Quando tentamos mudar nossos hábitos alimentares focando apenas nesses comportamentos visíveis – como acontece em muitas dietas e programas de “reeducação alimentar” – frequentemente encontramos resistência, recaídas e frustração. Isso ocorre porque estamos tentando modificar apenas a ponta do iceberg, ignorando a massa substancial que está abaixo da superfície.
A Primeira Camada Submersa: Pensamentos e Crenças Alimentares
Logo abaixo da superfície, encontramos a primeira camada submersa do iceberg: nossos pensamentos e crenças sobre alimentação. Esta camada inclui:
- Pensamentos automáticos: “Não posso comer carboidratos à noite”, “Doces são proibidos”, “Se começar a comer isso, não vou conseguir parar”
- Regras alimentares: “Devo comer apenas três vezes ao dia”, “Preciso contar todas as calorias”
- Crenças sobre alimentos: “Açúcar é veneno”, “Gordura faz mal”, “Carboidratos engordam”
- Distorções cognitivas: “Comi um pedaço de bolo, estraguei toda a dieta”, “Ou sigo o plano alimentar perfeitamente ou sou um fracasso”
Estas crenças e pensamentos frequentemente operam em um nível semiconsciente, influenciando nossas escolhas alimentares sem que percebamos completamente. Muitas dessas ideias são internalizadas a partir de mensagens culturais, familiares ou da mídia, e raramente são questionadas.
A Terapia do Esquema nos ajuda a identificar e questionar essas crenças, examinando sua origem e validade. Por exemplo, a crença “Preciso estar magro para ser amado” pode ser rastreada até experiências de rejeição na infância ou mensagens culturais sobre valor pessoal e aparência física.
Mergulhando Mais Fundo: Emoções e Necessidades Emocionais
Descendo mais profundamente no iceberg, encontramos a camada das emoções e necessidades emocionais. Esta é uma área particularmente importante, pois muitos comportamentos alimentares disfuncionais servem como estratégias para lidar com estados emocionais difíceis.
O comer emocional – usar a comida para regular emoções como tristeza, ansiedade, tédio ou até mesmo alegria – é extremamente comum. A comida pode funcionar como:
- Conforto emocional: Alimentos que nos lembram de momentos felizes ou seguros
- Distração: Comer para evitar sentir emoções desconfortáveis
- Recompensa: Usar alimentos como prêmio após situações estressantes
- Preenchimento: Tentar satisfazer com comida necessidades emocionais não atendidas
Por trás desses padrões emocionais estão necessidades humanas fundamentais que podem não estar sendo adequadamente satisfeitas, como necessidade de segurança, conexão, autonomia, autoestima e expressão emocional autêntica.
A Psiconutrição reconhece a importância de identificar a fome emocional e diferenciá-la da fome física. Através de técnicas como o mindful eating (alimentação consciente), aprendemos a reconhecer os sinais corporais de fome e saciedade, bem como a identificar quando estamos buscando comida por razões emocionais.
No Fundo do Iceberg: Esquemas Desadaptativos Precoces
Na base do iceberg, encontramos os Esquemas Desadaptativos Precoces – padrões emocionais e cognitivos profundamente enraizados que se desenvolvem durante a infância e adolescência, e continuam influenciando nosso comportamento na vida adulta.
De acordo com a Terapia do Esquema, desenvolvida pelo Dr. Jeffrey Young, esses esquemas surgem quando necessidades emocionais essenciais não são adequadamente atendidas na infância. Eles funcionam como lentes através das quais interpretamos nossas experiências e orientamos nosso comportamento, incluindo nossa relação com a comida.
Alguns esquemas particularmente relevantes para o comportamento alimentar incluem:
1. Privação Emocional: A crença de que nossas necessidades emocionais nunca serão adequadamente atendidas. Pessoas com este esquema podem usar a comida como substituto para o conforto emocional que sentem que nunca receberão de outras pessoas.
2. Abandono/Instabilidade: O medo de que pessoas importantes nos abandonarão. A comida, ao contrário das pessoas, está consistentemente disponível e não nos abandona, tornando-se uma fonte confiável de conforto.
3. Defectividade/Vergonha: A crença de que somos fundamentalmente falhos ou indignos de amor. Este esquema pode manifestar-se em comportamentos alimentares restritivos como tentativa de “corrigir” o corpo percebido como defeituoso.
4. Padrões Inflexíveis/Crítica Excessiva: A crença de que devemos atingir padrões extremamente altos. Este esquema pode levar a regras alimentares rígidas e perfeccionismo em relação à dieta.
5. Autocontrole/Autodisciplina Insuficientes: Dificuldade em exercer autocontrole adequado. Pode manifestar-se em comportamentos de compulsão alimentar quando emoções intensas surgem.

A Abordagem da Terapia do Esquema para o Comportamento Alimentar
A Terapia do Esquema oferece uma abordagem particularmente eficaz para trabalhar com comportamentos alimentares problemáticos porque vai além dos sintomas superficiais para abordar as estruturas psicológicas subjacentes.
Ao contrário de abordagens que focam apenas na modificação comportamental ou na educação nutricional, a Terapia do Esquema trabalha em múltiplos níveis:
1. Identificação de Esquemas: O primeiro passo é identificar quais esquemas desadaptativos estão influenciando o comportamento alimentar, através de questionários específicos e exploração da história pessoal.
2. Conexão entre Esquemas e Comportamentos Alimentares: O terapeuta ajuda a pessoa a reconhecer como seus esquemas específicos se manifestam em seus comportamentos alimentares.
3. Trabalho Cognitivo: Desafiar as crenças associadas aos esquemas através de técnicas cognitivas, como o questionamento socrático e a reestruturação de pensamentos distorcidos.
4. Trabalho Experiencial: Utilização de técnicas vivenciais como imaginação, diálogo de cadeiras e cartas terapêuticas para acessar e processar as emoções associadas aos esquemas.
5. Reparentalização Limitada: O terapeuta oferece, dentro dos limites apropriados da relação terapêutica, uma experiência emocional corretiva que ajuda a atender às necessidades emocionais não satisfeitas na infância.
6. Mudança Comportamental: Desenvolvimento de novos padrões comportamentais que desafiam os esquemas e promovem uma relação mais saudável com a comida.
Estudos têm demonstrado a eficácia da Terapia do Esquema no tratamento de transtornos alimentares, particularmente em casos complexos ou crônicos que não responderam bem a outras abordagens.
Psiconutrição: Integrando Mente e Nutrição
Enquanto a Terapia do Esquema trabalha com as estruturas psicológicas profundas, a Psiconutrição oferece uma ponte entre o conhecimento nutricional e os aspectos psicológicos da alimentação.
A Psiconutrição é uma abordagem integrativa que reconhece que nossa relação com a comida é influenciada tanto por fatores fisiológicos quanto psicológicos. Ela combina princípios da nutrição, psicologia e neurociência para promover uma relação mais saudável e consciente com a alimentação.
Alguns princípios fundamentais da Psiconutrição incluem:
1. Alimentação Consciente (Mindful Eating): Praticar a atenção plena durante as refeições, observando sabores, texturas e sensações de fome e saciedade sem julgamento.
2. Reconhecimento da Fome Física vs. Emocional: Aprender a diferenciar entre a necessidade fisiológica de nutrientes e o impulso de comer por razões emocionais.
3. Neutralidade Alimentar: Desafiar a categorização moral dos alimentos como “bons” ou “ruins”, “permitidos” ou “proibidos”.
4. Nutrição Adequada para Saúde Mental: Reconhecer a conexão bidirecional entre nutrição e saúde mental, incluindo como certos nutrientes afetam o humor e a regulação emocional.
5. Abordagem Não-Restritiva: Trabalhar com uma filosofia de inclusão em vez de exclusão, focando em adicionar alimentos nutritivos em vez de eliminar alimentos “problemáticos”.
A integração da Psiconutrição com a Terapia do Esquema cria uma abordagem holística que aborda tanto os aspectos práticos da alimentação quanto as estruturas psicológicas profundas que influenciam nossas escolhas alimentares.
Sinais de Alerta: Quando o Comportamento Alimentar Indica Problemas Mais Profundos
É importante reconhecer quando os comportamentos alimentares podem estar sinalizando a presença de esquemas desadaptativos ou outros problemas psicológicos que requerem atenção profissional. Alguns sinais de alerta incluem:
1. Rigidez Extrema: Regras alimentares inflexíveis e angústia significativa quando essas regras são quebradas.
2. Padrão Cíclico de Restrição e Compulsão: Alternância entre períodos de alimentação altamente restritiva e episódios de compulsão alimentar.
3. Uso Consistente da Comida para Regular Emoções: Recorrer regularmente à comida como principal estratégia para lidar com emoções difíceis.
4. Pensamentos Obsessivos: Preocupação constante com comida, peso ou forma corporal que interfere significativamente na qualidade de vida.
5. Comportamentos Compensatórios: Uso de estratégias como exercício excessivo, jejum prolongado ou purgação após comer.
6. Isolamento Social Relacionado à Alimentação: Evitar situações sociais que envolvem comida ou comer apenas quando sozinho.
É fundamental entender a diferença entre hábitos alimentares inadequados e transtornos alimentares clinicamente significativos. Se você reconhece vários desses sinais, é recomendável buscar a avaliação de um profissional especializado.
Estratégias Integradas: Combinando Terapia do Esquema e Psiconutrição
Para trabalhar efetivamente com o iceberg do comportamento alimentar, é útil adotar uma abordagem integrada:
1. Mapeamento do Seu Iceberg Pessoal
Comece identificando as diferentes camadas do seu próprio iceberg alimentar através de um diário alimentar expandido que registra não apenas o que você come, mas também pensamentos, emoções e situações associadas.
2. Desenvolvimento de Consciência Alimentar
Pratique técnicas de mindful eating para reconectar com os sinais naturais do seu corpo:
- Coma sem distrações (TV, celular, computador)
- Observe cores, texturas, aromas e sabores dos alimentos
- Mastigue lentamente e saboreie cada garfada
- Verifique seu nível de fome/saciedade antes, durante e após as refeições
3. Identificação e Reparação de Esquemas
Trabalhe com os esquemas que mais influenciam seu comportamento alimentar:
- Identifique a origem desses esquemas em sua história pessoal
- Reconheça como eles se manifestam em sua relação atual com a comida
- Desenvolva um “modo adulto saudável” que possa responder compassivamente às partes vulneráveis
4. Desenvolvimento de Estratégias Alternativas para Necessidades Emocionais
Crie um “menu” de atividades não-alimentares para atender às suas necessidades emocionais, como banho quente para conforto, leitura para distração, ou escrever em um diário para processamento emocional.
5. Construção de uma Relação Flexível com a Alimentação
Trabalhe para desenvolver uma abordagem mais equilibrada e menos rígida, incluindo todos os grupos alimentares sem categorização moral e cultivando autocompaixão quando ocorrerem “deslizes”.
Rumo a uma Relação Mais Consciente com a Alimentação
A metáfora do iceberg nos lembra que, para transformar verdadeiramente nossa relação com a comida, precisamos olhar além dos comportamentos visíveis e explorar as profundezas do que está abaixo da superfície. Quando abordamos apenas a ponta do iceberg – tentando mudar o que comemos sem abordar por que comemos – frequentemente encontramos resistência e recaídas.
A integração da Terapia do Esquema e da Psiconutrição oferece uma abordagem holística que reconhece a complexidade do comportamento alimentar humano. Esta combinação nos permite:
- Compreender as raízes profundas de nossos padrões alimentares
- Desenvolver maior consciência sobre a conexão entre emoções e alimentação
- Identificar e modificar esquemas desadaptativos que influenciam nossa relação com a comida
- Cultivar uma abordagem mais flexível, consciente e nutritiva para a alimentação
- Atender às nossas necessidades emocionais de formas que vão além da comida
Ao trabalhar com todas as camadas do iceberg – dos comportamentos visíveis aos esquemas profundos – podemos desenvolver uma relação com a comida que honra tanto nossas necessidades nutricionais quanto nossas necessidades emocionais.
Este artigo tem caráter informativo e não substitui o acompanhamento profissional. Se você está lutando com questões relacionadas à alimentação, considere buscar ajuda de um psicólogo especializado e/ou um nutricionista.